Alfred Polgar nos anos 30
NOTA
(1) Uma referência ao escritor místico seiscentista alemão Johann Schefler (1624-77), mais conhecido sob o pseudónimo de Angelus Silesius (Anjo da Silésia). A sua obra maior foi Das Cherubinische Wandersmann (O Peregrino Angélico), basicamente uma colecção de apotegmas morais. [Nota de Harold Segel, vd. abaixo.]
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Título original: “Theorie des Café Central”, 1926. Vd. Alfred Polgar, Kleine Schriften, vol. 4, págs. 254-59. Esta primeira tradução portuguesa foi feita em 2006 a partir da versão inglesa "Theory of the Café Central" incluída na antologia de Harold Segel, The Vienna Coffeehouse Wits, 1890-1938 (Purdue, 1993).
O Café Central é, realmente, um café diferente de todos os outros. É mais uma visão do mundo, cuja verdadeira essência, todavia, reside em absolutamente não observar o mundo. O que é que ali se vê, então? Disso tratarei mais adiante. O que está experimentalmente assente é que não há ninguém no Café Central que não seja parte dele, isto é, em cujo espectro do ego não apareça a cor Central, que é uma mistura de cinza e verde ultra-enjoado. Se foi o local que se adaptou ao indivíduo ou o indivíduo ao local, é ponto controvertido. Admito que tenha havido uma acção recíproca. "Tu não estás no lugar, é antes o lugar que está em ti", diz o Peregrino Angélico. (1)
Se todas as histórias relacionadas com este café fossem moídas, colocadas numa cuba de destilação e gaseificadas, formar-se-ia um gás pesado, iridescente, cheirando vagamente a amónia: é o chamado ar do Café Central. Isso define o clima espiritual deste espaço, um clima bem particular em que a inaptidão para a vida, e só esta, floresce na plena manutenção da sua inaptidão. Aqui desenvolve a impotência os poderes que lhe são intrínsecos, aqui amadurecem os frutos da infecundidade e cobra renda toda a não-propriedade. Tudo isto só está ao alcance de um verdadeiro Centralista, alguém que, se o seu café está fechado, tem o sentimento de ter sido lançado às duras penas da vida, abandonado às mais imprevisíveis consequências, anomalias e crueldades do desconhecido.
O Café Central situa-se à latitude vienense do meridiano da solidão. Os seus habitantes são, na maioria, pessoas cuja repulsa pelos seres humanos seus semelhantes é tão viva quanto a necessidade de estar com gente que queira estar só, mas que precise de companhia para isso. O seu mundo interior requer uma camada de mundo exterior como material isolante; as suas frouxas vozes solistas não prescindem do suporte do coro. São naturezas inseguras, que ficam um tanto perdidas sem as certezas que tiram do sentimento de constituírem uma pequena parte de um todo, para cujo tom e cor contribuem.
O Centralista é uma pessoa a quem a família, a profissão e o partido político não dão esse sentimento de pertença. O café apresenta-se, solicitamente, como uma totalidade sucedânea, convidando à imersão e à dissolução. É assim compreensível que, sobretudo, as mulheres, que nunca conseguem estar sós e precisam de, pelo menos, uma pessoa por perto, têm um fraco pelo Café Central. É o lugar certo para gente que sabe abandonar e ser abandonada para bem do seu destino, mas a quem falta ousadia para cumprir esse destino. É um verdadeiro asilo para quem tem de matar o tempo antes que o tempo o mate. É o doce lar daqueles que abominam o doce lar, o refúgio seguro de casais e amantes diante da ameaça de uma vida conjunta sem problemas, o posto de primeiros socorros das mentes confusas que, toda a vida em busca de si próprias e toda a vida em fuga de si próprias, escondem o seu ego fugitivo atrás de um jornal, conversas enfadonhas ou jogos de cartas, e empurram o ego perseguidor para o papel de maçador que tem de calar a boca.
O Café Central representa, pois, algo como uma organização de desorganizados.
Neste espaço venerado, cada indivíduo semi-indeterminado é creditado com uma personalidade plena. Enquanto se mantiver dentro dos limites do café, pode cobrir todas as suas despesas morais com este crédito. Àquele que mostrar desdém pelo dinheiro dos outros está reservada a coroa anti-burguesa.
O Centralista vive parasitariamente da história que circula a seu respeito. Aí está o principal, o essencial. O resto, os factos da sua existência, tudo isso são notas de rodapé, adendas e embelezamentos que podem ser dispensados.
Os fregueses do Café Central conhecem-se, amam-se e detestam-se mutuamente. Até aqueles que não estão vinculados a nenhuma associação consideram esta não-associação como uma associação. A própria aversão mútua tem força associativa no Café Central; ela cumpre e põe em prática uma espécie de solidariedade maçónica. Toda a gente sabe da vida de toda a gente. O Café é um ninho de província no ventre da metrópole, a fervilhar de boatos, inveja e maledicência. Penso que os peixes no aquário devem viver como os habitués deste café, sempre em círculos apertados à volta uns dos outros, sempre atarefados sem propósito, usando a refracção inclinada da luz ambiente como um divertimento diferente, sempre expectantes, mas também cheios de ansiedade, não vá alguma vez algo novo, brincando ao “mar” com um ar grave, cair dentro da tina de vidro, no seu minúsculo fundo do mar artificial. Se amanhã, Deus não permita, o aquário fosse transformado num banco, eles sentir-se-iam completamente perdidos.
Naturalmente, o peixe-Central, habituado a partilhar com outros aquele exíguo espaço respirável durante tantas horas da sua vida, perdeu toda a timidez e cerimónia. O Centralista que se preza conduz a vida privada dos outros e não joga às escondidas com a sua própria. Isto, reforçado pela acostumada tendência do local para a auto-ironia e a serena confissão das fraquezas próprias, cria uma esfera de sociabilidade suspensa na qual toda a reserva púdica se esbate e extingue. Há fregueses do Central que andam por ali psiquicamente nus, sem receio que a sua nudez pueril e inocente seja interpretada como falta de vergonha. Aqui há uns anos, o proprietário do Café Central tentou acomodar o espaço a esta propensão paradisíaca dos seus clientes regulares colocando lá uma palmeira. Mas aquela donzela do Oriente não suportou o clima do local, apesar da dominante oriental do dito. Foi cortada em pedacinhos e os seus restos mortais encontraram utilização na cozinha − ou como combustível ou como grãos de café, os investigadores não chegaram a um consenso nesta matéria.
Só está habilitado a desfrutar do charme essencial desse esplêndido café aquele que nada mais quer dali do que estar lá. A ausência de propósito santifica a estadia. No fundo, talvez o habitué não goste do local nem da gente que ruidosamente o povoa, mas o seu sistema nervoso exige imperiosamente uma dose diária de Centralina. Dificilmente se pode explicar isto apenas pelo hábito. Nem pelo facto de a gente do Central se sentir sempre atraída, como o assassino pelo local do crime, por um lugar onde tanto tempo mataram, onde já dizimaram anos inteiros. Então qual é a explicação? A atmosfera! Só posso dizer isto: a atmosfera! Há escritores, por exemplo, que são incapazes de cumprir as suas tarefas literárias noutro lugar que não o Café Central. Só ali, naquelas mesas da indolência, está a mesa de trabalho posta para eles, só ali, envolvidos naquela atmosfera ociosa, é que a sua inércia se torna fecundidade. Certos tipos criativos só no Central conseguem não ter ideia nenhuma − noutro lugar, na verdade, ainda menos. Há poetas e outros industriais aos quais só no Café Central surgem ideias rendosas; pessoas com prisão de ventre a quem só ali se abre a porta do alívio; gente que há muito perdeu o apetite pelo erótico e que só ali sente fome; calados que só no Central reencontram a sua língua ou a de outra pessoa; e gananciosos cuja glândula monetária só ali secreta.
Esse enigmático café tem o poder de serenar na inquieta gente que o visita aquilo a que chamo o seu desassossego cósmico. Neste lugar de relações descontraídas, a relação com Deus e com as estrelas também se descontrai. O indivíduo escapa às suas relações obrigatórias com o universo entrando num relacionamento casual, irresponsável e sensual com coisa nenhuma. As intimidações da eternidade não atravessam as paredes do Café Central, ao abrigo das quais se pode gozar a doce despreocupação do momento.
Sobre a vida amorosa do Café Central, sobre o equilíbrio das distinções sociais que nele vigoram, sobre as correntes políticas e literárias que banham as suas margens escalavradas, sobre os enterrados vivos no mausoléu-Central que há muito aguardam a sua exumação embora esperando que tal nunca venha a acontecer, sobre a comédia de máscaras plena de espírito e desvario que, naquelas salas, faz de todas as noites um Carnaval - sobre estas e outras coisas muito haveria ainda que dizer. Mas quem se interessa pelo Café Central já sabe tudo isso e quem não se interessa pelo Café Central não nos interessa a nós.
É apenas um café, mas que café! Nunca encontrarão outro lugar assim. Aplica-se a ele o que Knut Hamsun diz da cidade de Christiania na primeira frase do seu imortal Fome: “Quem lá passa fica marcado por ela”.
Se todas as histórias relacionadas com este café fossem moídas, colocadas numa cuba de destilação e gaseificadas, formar-se-ia um gás pesado, iridescente, cheirando vagamente a amónia: é o chamado ar do Café Central. Isso define o clima espiritual deste espaço, um clima bem particular em que a inaptidão para a vida, e só esta, floresce na plena manutenção da sua inaptidão. Aqui desenvolve a impotência os poderes que lhe são intrínsecos, aqui amadurecem os frutos da infecundidade e cobra renda toda a não-propriedade. Tudo isto só está ao alcance de um verdadeiro Centralista, alguém que, se o seu café está fechado, tem o sentimento de ter sido lançado às duras penas da vida, abandonado às mais imprevisíveis consequências, anomalias e crueldades do desconhecido.
O Café Central situa-se à latitude vienense do meridiano da solidão. Os seus habitantes são, na maioria, pessoas cuja repulsa pelos seres humanos seus semelhantes é tão viva quanto a necessidade de estar com gente que queira estar só, mas que precise de companhia para isso. O seu mundo interior requer uma camada de mundo exterior como material isolante; as suas frouxas vozes solistas não prescindem do suporte do coro. São naturezas inseguras, que ficam um tanto perdidas sem as certezas que tiram do sentimento de constituírem uma pequena parte de um todo, para cujo tom e cor contribuem.
O Centralista é uma pessoa a quem a família, a profissão e o partido político não dão esse sentimento de pertença. O café apresenta-se, solicitamente, como uma totalidade sucedânea, convidando à imersão e à dissolução. É assim compreensível que, sobretudo, as mulheres, que nunca conseguem estar sós e precisam de, pelo menos, uma pessoa por perto, têm um fraco pelo Café Central. É o lugar certo para gente que sabe abandonar e ser abandonada para bem do seu destino, mas a quem falta ousadia para cumprir esse destino. É um verdadeiro asilo para quem tem de matar o tempo antes que o tempo o mate. É o doce lar daqueles que abominam o doce lar, o refúgio seguro de casais e amantes diante da ameaça de uma vida conjunta sem problemas, o posto de primeiros socorros das mentes confusas que, toda a vida em busca de si próprias e toda a vida em fuga de si próprias, escondem o seu ego fugitivo atrás de um jornal, conversas enfadonhas ou jogos de cartas, e empurram o ego perseguidor para o papel de maçador que tem de calar a boca.
O Café Central representa, pois, algo como uma organização de desorganizados.
Neste espaço venerado, cada indivíduo semi-indeterminado é creditado com uma personalidade plena. Enquanto se mantiver dentro dos limites do café, pode cobrir todas as suas despesas morais com este crédito. Àquele que mostrar desdém pelo dinheiro dos outros está reservada a coroa anti-burguesa.
O Centralista vive parasitariamente da história que circula a seu respeito. Aí está o principal, o essencial. O resto, os factos da sua existência, tudo isso são notas de rodapé, adendas e embelezamentos que podem ser dispensados.
Os fregueses do Café Central conhecem-se, amam-se e detestam-se mutuamente. Até aqueles que não estão vinculados a nenhuma associação consideram esta não-associação como uma associação. A própria aversão mútua tem força associativa no Café Central; ela cumpre e põe em prática uma espécie de solidariedade maçónica. Toda a gente sabe da vida de toda a gente. O Café é um ninho de província no ventre da metrópole, a fervilhar de boatos, inveja e maledicência. Penso que os peixes no aquário devem viver como os habitués deste café, sempre em círculos apertados à volta uns dos outros, sempre atarefados sem propósito, usando a refracção inclinada da luz ambiente como um divertimento diferente, sempre expectantes, mas também cheios de ansiedade, não vá alguma vez algo novo, brincando ao “mar” com um ar grave, cair dentro da tina de vidro, no seu minúsculo fundo do mar artificial. Se amanhã, Deus não permita, o aquário fosse transformado num banco, eles sentir-se-iam completamente perdidos.
Naturalmente, o peixe-Central, habituado a partilhar com outros aquele exíguo espaço respirável durante tantas horas da sua vida, perdeu toda a timidez e cerimónia. O Centralista que se preza conduz a vida privada dos outros e não joga às escondidas com a sua própria. Isto, reforçado pela acostumada tendência do local para a auto-ironia e a serena confissão das fraquezas próprias, cria uma esfera de sociabilidade suspensa na qual toda a reserva púdica se esbate e extingue. Há fregueses do Central que andam por ali psiquicamente nus, sem receio que a sua nudez pueril e inocente seja interpretada como falta de vergonha. Aqui há uns anos, o proprietário do Café Central tentou acomodar o espaço a esta propensão paradisíaca dos seus clientes regulares colocando lá uma palmeira. Mas aquela donzela do Oriente não suportou o clima do local, apesar da dominante oriental do dito. Foi cortada em pedacinhos e os seus restos mortais encontraram utilização na cozinha − ou como combustível ou como grãos de café, os investigadores não chegaram a um consenso nesta matéria.
Só está habilitado a desfrutar do charme essencial desse esplêndido café aquele que nada mais quer dali do que estar lá. A ausência de propósito santifica a estadia. No fundo, talvez o habitué não goste do local nem da gente que ruidosamente o povoa, mas o seu sistema nervoso exige imperiosamente uma dose diária de Centralina. Dificilmente se pode explicar isto apenas pelo hábito. Nem pelo facto de a gente do Central se sentir sempre atraída, como o assassino pelo local do crime, por um lugar onde tanto tempo mataram, onde já dizimaram anos inteiros. Então qual é a explicação? A atmosfera! Só posso dizer isto: a atmosfera! Há escritores, por exemplo, que são incapazes de cumprir as suas tarefas literárias noutro lugar que não o Café Central. Só ali, naquelas mesas da indolência, está a mesa de trabalho posta para eles, só ali, envolvidos naquela atmosfera ociosa, é que a sua inércia se torna fecundidade. Certos tipos criativos só no Central conseguem não ter ideia nenhuma − noutro lugar, na verdade, ainda menos. Há poetas e outros industriais aos quais só no Café Central surgem ideias rendosas; pessoas com prisão de ventre a quem só ali se abre a porta do alívio; gente que há muito perdeu o apetite pelo erótico e que só ali sente fome; calados que só no Central reencontram a sua língua ou a de outra pessoa; e gananciosos cuja glândula monetária só ali secreta.
Esse enigmático café tem o poder de serenar na inquieta gente que o visita aquilo a que chamo o seu desassossego cósmico. Neste lugar de relações descontraídas, a relação com Deus e com as estrelas também se descontrai. O indivíduo escapa às suas relações obrigatórias com o universo entrando num relacionamento casual, irresponsável e sensual com coisa nenhuma. As intimidações da eternidade não atravessam as paredes do Café Central, ao abrigo das quais se pode gozar a doce despreocupação do momento.
Sobre a vida amorosa do Café Central, sobre o equilíbrio das distinções sociais que nele vigoram, sobre as correntes políticas e literárias que banham as suas margens escalavradas, sobre os enterrados vivos no mausoléu-Central que há muito aguardam a sua exumação embora esperando que tal nunca venha a acontecer, sobre a comédia de máscaras plena de espírito e desvario que, naquelas salas, faz de todas as noites um Carnaval - sobre estas e outras coisas muito haveria ainda que dizer. Mas quem se interessa pelo Café Central já sabe tudo isso e quem não se interessa pelo Café Central não nos interessa a nós.
É apenas um café, mas que café! Nunca encontrarão outro lugar assim. Aplica-se a ele o que Knut Hamsun diz da cidade de Christiania na primeira frase do seu imortal Fome: “Quem lá passa fica marcado por ela”.
NOTA
(1) Uma referência ao escritor místico seiscentista alemão Johann Schefler (1624-77), mais conhecido sob o pseudónimo de Angelus Silesius (Anjo da Silésia). A sua obra maior foi Das Cherubinische Wandersmann (O Peregrino Angélico), basicamente uma colecção de apotegmas morais. [Nota de Harold Segel, vd. abaixo.]
© Tradução portuguesa de José Barreto.
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Título original: “Theorie des Café Central”, 1926. Vd. Alfred Polgar, Kleine Schriften, vol. 4, págs. 254-59. Esta primeira tradução portuguesa foi feita em 2006 a partir da versão inglesa "Theory of the Café Central" incluída na antologia de Harold Segel, The Vienna Coffeehouse Wits, 1890-1938 (Purdue, 1993).
1 comment:
Ótima tradução, Barreto. Aproveitei estas férias para tirar a poeira de alguns livros em alemão que ganhei há alguns anos e o 1º foi "Kaffeehaus: literarische Spezialitäten und amouröse Gusto- Stückln aus Wien", que deve ser a versão original desse em inglês que mencionas aí.
Meu alemão não é suficiente para ler o original com folga, então tua tradução foi um achado.
Abraço.
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